Dôs com Celina Pereira
Conversa com Celina Pereira, certamente uma das figuras mais emblemáticas do espectro cultural cabo-verdiano. Com uma longa carreira de décadas, não deixa de ser uma mulher cheia de planos e projectos em curso e não se inibe de dar um recado onde demonstra alguma mágoa por não ser mais considerada na sua terra natal. E explica porque é que, orgulhosamente, gosta de mostrar o seu lado africano.
Chegada a este momento dentro de uma tão longa carreira, tão cheia de obra, o que te falta fazer. O que é que gostavas de fazer e que ainda não fizeste?
Celina Pereira: Falta-me fazer tudo Porque acredito que qualquer criador ou artista, se tem consciência do papel que tem, nunca está contente com o que faz. Depois sou uma pessoa extremamente exigente comigo, acho sempre que pode ser mais e melhor. Mas por vezes, dou por mim a fazer-me festinhas porque (em consciência) também já fiz algumas coisas boas durante estes anos...
Como é que gostavas de ser lembrada?
Como uma cabo-verdiana, cidadã do mundo, que quis sempre honrar o nome e a cultura do seu pais e dos seus ancestrais, sobretudo da minha família, de que --- tenho muito orgulho. Do meu pai e da minha mãe que me criaram tão bem e--- me deram esta noção de responsabilidade, de lugares de intervenção onde sempre deveremos estar.
AS ORGENS
Nasceste em que ilha?
Na Boavista, onde morei até aos seis anos e tal. Depois mudei-me para S. Vicente com os meus pais. Costumo dizer que sou de duas ilhas, em termos de proveniência: da Boavista, onde nasci, e de S. Vicente, onde vivi parte da minha infância e adolescência, fiz o liceu, tive o primeiro namorado, essas coisas todas.
Como é que foram os teus primeiros anos aqui em Portugal, numa época muito complicada?
Sim, não foi fácil. Fui para Viseu, nos anos 60. Um choque térmico, chorava todas as noites. Mas foi muito bom em termos de abrir outros horizontes, conhecer novas gentes, uma culinária diferente daquela a que estava habituada.. Quando vim para Portugal pela segunda vez em 1970, a minha ambientação foi mais pacifica, pois acabei ficando em casa de familiares.
Gostas que as pessoas te vejam como cantora, como contadora de estórias, como intérprete, como actriz? Com qual destas facetas de intervenção artística te sentes mais identificada?
Eu acho que qualquer dessas áreas é minha. Sou, acima de tudo, uma comunicadora que utiliza essas diferentes estradas para chegar ao público. Quando estava num balcão da TAP a falar com o público não era muito diferente, era comunicar com as pessoas. Quando estou numa escola a contar uma estória às crianças, estou a comunicar do mesmo modo. Considero-me acima de tudo uma comunicadora, que utiliza a música, a palavra, a poesia, a representação, o que quiseres. A gente tem dons que precisa de explorar e melhorar e eu tenho procurado fazer isso, com formações contínuas, para me aperfeiçoar neste caminho da comunicação. É evidente que de tudo isto, o que eu mais gosto de fazer é de cantar.
Mas curiosamente, gravas muito pouco...
Sim, porque as coisas são complicadas. Se eu tivesse nascido de uma família rica, quem sabe se poderia ter uma discografia mais vasta.
FRUSTRAÇÃO POR GRAVAR POUCO
Gostarias de ter tido a oportunidade para gravar mais vezes e com mais frequência?
Sem dúvida. E é curioso que aos discos dos meus áudio-livros, as pessoas não se referem como trabalhos discográficos, que também são. Referem-se ao livro e não pensam no CD.
Onde tu não dizes apenas, cantas também, dentro do que é habitual na tua forma de contar histórias, já que tu as contas cantando, ou cantas contando estórias, como quiseres...
É isso mesmo. E se os genes têm memoria, são os meus genes africanos que trazem essa característica. África, onde há muitos contadores de estórias que contam cantando e cantam contando. Eu considero que esta minha forma de contar estórias é uma herança que trago de África.
Aproveito esta deixa para lançar uma pequena provocação: há muitos cabo-verdianos, principalmente nas ilhas no Norte, que não têm uma tendência muito vincada, para reivindicar o seu lado africano. Ainda hoje continuamos a discutir este assunto, a polemizar sobre esta questão da maior ou menor africanidade do povo cabo-verdiano. Tu, claramente, sempre fizeste questão de vincar esse teu lado africano. Como é que vês esta polémica?
Considero que é uma discussão completamente estéril. Em termos históricos e sociológicos --- não posso nem devo esquecer-me que os portugueses trouxeram escravos do continente africano e que Santiago foi um enterposto de escravos durante quase cinco séculos. Venho de uma cultura tão misturada, onde o lado africano foi sempre tão posto para trás, pois no tempo colonial os batuques, o kola san jon, as tabancas, eram proibidas porque eram consideradas expressões menores. Em consciência, talvez eu esteja, inconscientemente, a provocar os meus patrícios, porque é mais do que óbvio que temos genes dos dois lados e não podemos menosprezar nenhum dos dois.
Não te parece também que muitos artistas que trabalham fora de Cabo Verde acabam por entender que é vincando o seu lado africano que conseguem se afirmar melhor neste terreno chamado mercado, marcando pela diferença a sua presença nesse mesmo mercado?
Devo dizer-te que quando cantei pela libertação de Nelson Mandela, no final dos anos oitenta, em Roma , usava roupas africanas. Na capa do meu primeiro EP, a foto também me mostrava com uma indumentária desse tipo. Quando Mandela veio a Portugal depois da sua libertação, --- fui convidada a cantar na Aula Magna e levei um belo fato ocidental. Houve uma amiga --- cantora que me disse isto: olha, adorei a tua actuação, mas faltou-me ver-te com aquela roupa que costumavas usar.
Que hoje é tua imagem de marca.
Pois é, hoje eu não a dispenso. Faz parte da minha identidade enquanto artista. É o meu selo
Depois de 40 anos fora de Cabo Verde, sentes que o teu trabalho é valorizado no teu pais?
Seria cínica se respondesse que sim. Acho que não tem sido. Vou ser muito directa: ninguém faz obra a pensar em prémios, mas quando comecei com esta “mania” de contar estórias e gravei o meu primeiro trabalho sobre contos tradicionais, logo de seguida recebi um prémio internacional na Itália. E mais se seguiram. A verdade é que teve pouca ou nenhuma repercussão em Cabo Verde. Passaram-se muitos anos sem que o pais desse nenhuma importância ao que eu andava a fazer. E considero que é um trabalho válido e importante: de preservação da memória, um trabalho para a educação, para as referências identitárias. Em 2004, o Presidente Jorge Sampaio deu-me uma medalha de mérito e uma comenda. Cabo Verde fê-lo muito mais tarde. O meu país não me tem dado a atenção que eu gostaria de ter tido. Tive uma bela experiencia em S. Vicente com um périplo pelas escolas convidada pela Isaura Gomes, e sinceramente adorava fazer isso em Santiago, no Maio, na Boavista, no Fogo, por todo o meu Cabo Verde. O país tem tido esta fragilidade: só há bilhetes de avião para alguns artistas. E são pouquinhos. Não me perguntes porquê que eu não tenho resposta para isso.
Nota: resolvi publicar esta entrevista, realizada por mim há um par de anos, porque a minha grande amiga Celina Pereira foi, no passado fim de semana, distinguida com o Prémio Carreira, pela CVMW. Fiquei muito feliz e considero o prémio de uma justiça absoluta. Abraço crioulo, como ela costuma dizer!
Entrevista publicada no jornal A NaçãoFotografia de Joaquim Saial